Um áudio obtido pela TV Clube (ouça acima) revela as orientações da instrutora de uma autoescola de Teresina a um aluno que comprou a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Na gravação, ela diz ao candidato que não mencione a negociação para o examinador do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-PI) e faça o teste de direção normalmente, porque “o carro é cheio de câmera”. A instrutora garante ainda que, caso ele seja reprovado, receberá o dinheiro de volta.
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A Operação “Cribelo”, que investiga um esquema de venda de CNHs no Piauí, foi deflagrada na manhã desta quinta-feira (28) pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-PI) em Teresina e José de Freitas. Ao todo, 17 pessoas foram presas, incluindo instrutores de autoescolas e examinadores do Detran. Eles são investigados pelos crimes de corrupção passiva, corrupção ativa e associação criminosa.
No áudio, a instrutora afirma que vai entregar o dinheiro pago pelo aluno ao examinador do Detran, que “vai facilitar” a prova prática de direção. Ela ressalta que o candidato deve evitar estancar o carro – uma falta média, conforme os critérios de avaliação do Detran.
“Ele vai ficar falando pra ti: seta, dobre à direita, mas ele vai falar baixo. Não pode falar alto porque o carro é cheio de câmera. No carro tem um tablet, se você estancar eles não vão poder fazer muita coisa por ti”, afirma a funcionária da autoescola.
Em caso de reprovação no teste prático, a funcionária assegura ao aluno que o examinador vai devolver o dinheiro a ela, que o repassará de volta para o candidato. Se ele passar no exame da baliza, mas não avançar no exame do percurso, receberá metade do valor que pagou.
“Não fala nada desse assunto [para o examinador] porque dá confusão muito grande, dá até processo, um monte de coisa”, completa a instrutora.
A TV Clube também teve acesso a um vídeo (veja acima) que mostra o exame do mesmo candidato que recebeu o áudio da instrutora. Ele não menciona a negociação, como a funcionária da autoescola orientou.
Após o início do teste, um homem se aproxima da janela traseira do carro e entrega discretamente um papel para alguém sentado no banco de trás. Segundo a investigação da SSP, uma examinadora do Detran recebeu o papel de um despachante do setor de CNH do órgão. Para a polícia, isso evidencia uma troca de favores envolvendo pagamento para aprovação na prova de direção.
Em nota, o Detran afirmou que colabora com a investigação e investe em tecnologia para "maximizar a transparência e segurança dos usuários" (leia ao fim da reportagem).
"Havia o pagamento de valores em espécie e comprovantes de Pix. Os valores começavam em R$ 400 e chegavam a até R$ 1 mil, dependendo da categoria da CNH e do perfil do candidato. Muitos eram levados a pagar porque tinham receio de serem sabotados [no exame] se não fizessem", contou.
Metade do dinheiro ficava com os responsáveis por convencer os candidatos a pagarem pelo esquema, enquanto a outra metade era destinada aos examinadores do Detran.
Além das prisões e buscas e apreensões, dois estabelecimentos comerciais tiveram as atividades econômicas suspensas: uma autoescola e um bar que fica em frente à garagem do Detran na Zona Sul da capital, onde as negociações ilícitas aconteciam. Segundo a polícia, o genro do dono do bar era responsável por fazer esses acordos.
Os seis servidores do Detran presos também foram afastados de suas funções e tiveram bens sequestrados. De acordo com o delegado, mesmo quando a prisão temporária terminar, eles ainda não poderão voltar a trabalhar no órgão. Um total de 22 veículos de alto padrão, celulares e valores em espécie foram apreendidos.
"A gente notou uma discrepância patrimonial entre o salário dessas pessoas e a vida que ostentavam. Houve quebra de sigilo bancário para pedir o sequestro de bens", complementou Filipe Bonavides.
A diretora-geral do Detran-PI, Luana Barradas, estimou que cerca de 5 mil CNHs foram obtidas de maneira ilegal durante o período da investigação policial. Ela declarou que, ao final do inquérito, os documentos podem ser identificados e suspensos.
"A gente está esperando a finalização da investigação para ter todos os dados em mãos. Mas, de antemão, já vamos fazer o afastamento administrativo de todos os envolvidos. Hoje, com a nova plataforma do Detran, temos um sistema totalmente auditável e transparente para colaborar com a SSP", apontou a diretora.
Os suspeitos presos temporariamente devem responder pelos crimes de corrupção passiva, corrupção ativa e associação criminosa. Eles foram encaminhados à sede da SSP-PI, na Zona Leste de Teresina.
A operação foi realizada pela Superintendência de Operações Integradas (SOI) da pasta, que contou com apoio da Polícia Civil e da Polícia Militar.
Confira a íntegra da nota do Detran-PI:
O Detran-PI ressalta que tem colaborado com as investigações no âmbito da Operação Cribelo, deflagrada pela SSP-PI, e que é um dos interessados no combate às práticas criminosas dentro dos processos de aquisição de CNH. Para isto, tem investido em tecnologia, para maximizar a transparência e segurança aos usuários.
A implementação da baliza eletrônica, por exemplo, que é o exame prático todo monitorado por câmeras, onde o aluno só inicia e finaliza o teste com biometria digital e facial, dele e do examinador, possibilitou maior transparência no processo de obtenção de CNH no Detran-PI. Iniciada no segundo semestre de 2023, a ferramenta auditável ajuda a coibir crimes, pois tudo é monitorado em tempo real.
Foi a partir da percepção de comportamentos incompatíveis no transcorrer de exames práticos, monitorados por esse sistema eletrônico, que o Detran acionou as forças de segurança pública e passou a colaborar para a investigação que culminou na Operação Cribelo.
O Detran ressalta que vem investindo na transformação digital do fluxo de processos, documentos e serviços, visando maior seguridade de dados de seus usuários e veículos, bem como a lisura de suas atividades, buscando resguardar os interesses do cidadão.